quinta-feira, 16 de junho de 2005

"Nossa Senhora Desatadora de Nós"

"...sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava de morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos húmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e a luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranquilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro..."*


O fragmento de "Uma Aprendizagem..." de C. Lispector serviu como estímulo para criação do exercício-sólo de investigação cênica a partir de texto. Gestos, sons e imagens, impressões de Lóry, a ironia de Clarice, fragmentos de sensações, ora opostas, ora complementares, confundiram-se com impressões pessoais e o resultado apresentado foi um exercício de performance, ainda cru, mas aberto a descobertas.
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Exercício cênico realizado em 15/06/2005
UEL/Sala 669
D.: Int.II
Concepção: Karine Spuri

*LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. p. 49.

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